Cosme e Damião
Diversidade e Coexistência
{"time":1764165539756,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"Nomeados originalmente como Acta e Passio, os santos gêmeos da igreja cristã primitiva nasceram na cidade de Egeia, na Arábia, Oriente Médio, no final do século III d.C. Tiveram outros três irmãos: Antimo, Leôncio e Euprépio, todos martirizados. Sua mãe Teodata se tornou santa venerada pelos ortodoxos, e seu pai foi mártir durante a perseguição dos cristãos na era do imperador romano Diocleciano."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Médicos formados na Síria, suas santidades são atribuídas ao exercício da medicina gratuita, chamados de anárgiros – palavra de origem grega e que significa \"avessos ao dinheiro\". Devotados à fé cristã, se tornaram conhecidos por sua caridade, cura de enfermos e, ao mesmo tempo, buscavam o bem-estar espiritual das pessoas, convertendo-as ao cristianismo e alcançando grande respeito na sociedade da época. Perseguidos e acusados de feitiçaria pelo procônsul Lísias, resistiram às constantes torturas. Segundo a tradição, mesmo submetidos ao suplício na prisão, escaparam milagrosamente de ferimentos por fogo, água ou cruz, sendo finalmente decapitados em 27 de setembro, provavelmente entre 287 - 303."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"O culto aos mártires Cosme e Damião foi trazido ao Brasil em 1530 pelo capitão-donatário e navegador português Duarte Coelho Pereira, tornando-se padroeiros da cidade de Igarassu, em Pernambuco – venerados em uma das igrejas mais antigas em funcionamento no país. Na região Nordeste passaram a ser invocados na proteção contra contágios e epidemias. Considerados protetores dos farmacêuticos e cirurgiões, são solicitados em momentos de parto duplo ou contra feitiços e bruxarias. No século XIX foram popularizados pelo sincretismo das religiões de matriz africana."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Seus atributos iconográficos trazem referências às suas origens árabes, sendo apresentados juntos, usando barretes de doutor na cabeça, túnicas, capas de médicos e segurando as palmas de mártires nas mãos, cercados por uma mesa com estojo de cirurgião, lanceta para preparar pomadas, caixa de unguentos ou um urinol – frascos de vidro para examinar a urina dos pacientes."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Nas devoções afro-brasileiras há uma analogia com as divindades gêmeas Ibejis (Táiwo e Kèánindé), tradicionalmente representados por duas crianças, um menino e uma menina, inseparáveis, justamente por se completarem como o dia e a noite, o frio e o calor, o masculino e o feminino, em consonância com a mitologia iorubá-nagô. Temos aqui a inserção de um outro personagem na iconografia católica popular: Doum (Dois-Dois), em alusão a um terceiro irmão dos santos e em referência a uma terceira criança que nasce depois dos Ibejis: o Idowu (Doum). Para o catolicismo, não há uma ligação entre os irmãos e as crianças, ou a distribuição de doces. Essa prática surgiu com a associação dos escravizados aos orixás gêmeos, ambos os filhos de Xangô e lansã."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A habitual partilha de brinquedos e guloseimas é mais frequente nas religiões de origem africana, a exemplo da Umbanda, em veneração aos Erês, entidades que vivem uma infância eterna - sincretismos que unem atos de caridade, gratidão e união fraterna coletiva. Na tradicional cerimônia do Caruru de São Cosme e Damião realizada na Bahia em 27 de setembro por descendentes de iorubanos, observamos a mobilização de variados grupos e camadas sociais, celebrados nos terreiros e na elite local. Sete meninos são convidados para degustar a iguaria oferecida aos Ibejis, representando os gêmeos Cosme e Damião, Dois-Dois, Crispim, Crispiniano, Sàlàkó e Tàlàbí. Ritual semelhante é observado na cultura iorubá e tradições da Africa Ocidental: os obelá (honra) aos abiku (espírito infantil) fazem referência a uma criança que nasce para morrer, mas que pode renascer na mesma mãe, causando repetidos lutos. Pertencem à comunidade espiritual dos Egbé Orun Abikú e para evitar a sua partida precoce ao mundo das almas (Orum) são realizados rituais com nomes específicos para que permaneçam entre nós - restaurando o equilíbrio e rompendo ciclos de perdas. O abikuísmo não se limita à perda de crianças, podendo se manifestar em padrões repetitivos de instabilidade, doenças ou bloqueios na vida adulta. Doum, a criancinha vestida como os santos, personifica o universo pueril de até sete anos de idade. Para os adeptos das religiões afros, diz a crença que, a cada par de gêmeos que nascem, um terceiro não encarna na Terra - esse seria Doum, respeitado e adorado como da família dos Ibejis, porém considerado \"aquele que não veio\". Esse mito servia de consolo quando uma criança falecia ainda bebê, ou no ventre materno, partida compreendida como um retorno ao espaço do qual, um ser divino, não conseguia se despedir."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"É com grande satisfação que a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano apresenta a singular coleção de São Cosme e São Damião do acervo de Ludmilla Pomerantzeff, uma das mais referenciais do Brasil dedicada a esta preciosa temática; imagens de arte sacra erudita e popular, exaltando as nossas origens mestiças. Somam-se a estas esculturas africanas e a um ícone ortodoxo emprestados pela Coleção Ivani e Jorge Yunes. Destacam-se ainda esculturas barrocas e neoclássicas de procedências variadas e suportes plásticos distintos, da madeira policromada e dourada, passando por peças retabulares, aquelas oriundas de capelas rurais ou núcleos urbanos, do culto doméstico às miniaturas, muitas delas produzidas entre os séculos XVIII e XIX. Faturas originárias da Ásia, Europa e Nordeste brasileiro. Santos provenientes do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e, majoritariamente oriundos da Bahia - entre a capital Salvador e o sertão profundo - dialogando com as nossas mais valorosas raízes sincréticas. Conexão, diversidade e coexistência inter-religiosa, polissêmica, do catolicismo festeiro à exaltação das africanidades."}}],"version":"2.18.0"}
Rafael Schunk
Curadoria