Prataria
{"time":1760010847321,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"A prata sempre foi um metal escasso e cobiçado no Brasil.\nNos dois primeiros séculos de ocupação, as riquezas minerais concentravam-se na\ndistante e inacessível América Espanhola. As posses eram despachadas pelo Mar\ndo Caribe até Madrid, salvo quando desviadas por piratas ou perdidas nos naufrágios\nque até hoje alimentam as lendas e cobiças dos caçadores de tesouros. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Com a descoberta das minas de prata em Potosí, como o Cerro\nRico (1545), no antigo vice-reino do Peru (atual altiplano boliviano), a\nriqueza argêntea alimentou os desejos e fantasias de viajantes e aventureiros\nde todos os continentes. Assim, bandeirantes oriundos de São Paulo\ndeslocavam-se pelas imprecisas fronteiras sul-americanas em busca de mão de\nobra indígena e drogas do sertão. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A prataria extraída e beneficiada naquela região transformou\no comercio dos séculos 16 e 17, unindo, definitivamente, Oriente e Ocidente. Potosí́\ncontinha as mais ricas minas de prata do mundo, contribuindo para divulgar a fábula\ndo Eldorado americano, região que dobrou a produção mundial do minério nos\nvinte anos seguintes à sua descoberta. O metal circulante no Atlantico e no Pacífico\nera remetido em quantidades elevadas aos territórios orientais, onde a demanda\nfoi notável, e aos portos da Europa. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"O costume de acumular prata entre os moradores do Planalto\nde Piratininga é uma tradição antiga e remonta ao período bandeirista,\npercorrendo séculos até chegar nas coleções contemporâneas. Exemplo importante\né a copa de prata do Padre Dr. Guilherme Pompeu de Almeida (1656-1713), de sua\nfazenda em Araçariguama (SP). Almeida é considerado o maior capitalista do\nBrasil no século 17, sendo conhecido como “o banqueiro do sertão” e financiador\ndas bandeiras paulistas. Religioso-comerciante que emprestava dinheiro aos\naventureiros de São Paulo, ele equipou e viabilizou viagens ao interior da América\ndo Sul, recebendo como pagamento a cobiçada prata andina. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"O ciclo da prata na América Espanhola chegou ao Brasil de\nforma indireta, por meio de contrabando ou comércio informal. Com isso,\ninfluenciou a produção sacra paulista do século 17, favorecida pela unificação\ndas coroas ibéricas (1580-1640) e permitiu o financiamento de obras artísticas\nde vulto em Santana de Parnaíba e São Paulo. Ambos foram locais de intensa\natividade do primeiro grande artista brasileiro, o monge beneditino Frei\nAgostinho de Jesus, fundador da escola barrista de imaginária nacional. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Com o declínio da monocultura da cana-de-açúcar no Brasil em\nfins do período seiscentista, frente à concorrência com a produção holandesa\nnas Antilhas, de boa aceitação na Europa e a custos mais competitivos, a Coroa\nPortuguesa intensificou esforços para localizar novas fontes de riquezas nas colônias.\nAs jazidas auríferas descobertas em terras brasileiras no último quartel do século\n17 permitiram a ascensão do reinado de D. João V (1689-1750) a um período de glória.\nPosteriormente, contudo, os tempos de D. José I (1714-1777), foram impactados\npelo terremoto de 1755, que devastou a cidade de Lisboa. A reconstrução da\ncapital foi financiada pelo aumento dos impostos nas zonas de extração de gemas\ne metais preciosos em Minas Gerais. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"No século 18, Ouro Preto se tornou a cidade mais populosa da\nAmérica Latina, edificando o mais extenso conjunto de arquitetura Barroca do\nmundo, fama e cabedal que causou esvaziamento da Metrópole e deslocamentos de\ngrandes contingentes de garimpeiros para aquelas serras. Para evitar a concentração\nde riquezas nas mãos do clero, como ocorria com a prataria isenta de tributos\nem posse dos colégios, mosteiros e conventos na América Espanhola, o Reino de\nPortugal proibiu a instalação dessas ordens nas zonas de mineração aurífera. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Em pleno auge do ciclo do ouro nas Minas Gerais do século\n18, a prata tornou-se sinônimo de exuberância, ostentação e excentricidade nas\nigrejas mais abastadas, pois era importada a custos elevadíssimos de Potosí́ e\nde Portugal. O metal argênteo transformou- se em sinônimo de Sala do Tesouro em\nmuseus de arte sacra e templos Barrocos brasileiros: detinham-no em grande\nquantidade apenas as paróquias mais ricas, que o empregavam em procissões\nsolenes e na fabricação de lampadários e de banquetas, que cintilavam com as\nvelas acesas nas missas. A prataria da Sé de Mariana, por exemplo, foi doada\npor D. João V e está presente nas duas matrizes de Ouro Preto e na Catedral de\nSão Joao Del Rei, enriquecendo a Missa Tridentina e a imaginação dos devotos. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"O divisor de águas do Barroco brasileiro foi a frontaria da\nIgreja Paroquial de São João Batista, em Barão de Cocais (MG), um dos primeiros\nprojetos do Aleijadinho. Seu frontispício superou a rigidez linear\nluso-brasileira vigente na arquitetura chã do litoral e interior, trazendo\nalgumas novidades: recuo das torres cilíndricas com cúpulas ao gosto indiano, ornamentação\nem elegantes janelas, batentes de pedra-sabão e um nicho com escultura\nornamental – soluções empregadas posteriormente na Igreja de São Francisco de\nAssis em Ouro Preto, obra prima do Aleijadinho. Trata-se de conquistas possíveis\ngraças à abundância das catas auríferas. Esses modelos de fachada-retábulo,\noutrora restritos à região andina e ao México – estilo plateresco e\nchurrigueresco –, tornaram-se paradigma, protótipo, ou sinônimo da arquitetura\nreligiosa difundida na zona de mineração brasileira, adaptada à elegância do\nsabor rococó́ local e aos orientalismos, tão bem registrados nas pinturas oníricas\nde Alberto da Veiga Guignard (1896-1962). "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A Fundação Maria Luisa e Oscar Americano apresenta\nexemplares excepcionais de alfaias sacras relacionadas a esses ciclos econômicos\nna América do Sul: peças fundidas, batidas, repuxadas e cinzeladas. Somam-se a\nelas objetos de ourivesaria doméstica e cotidiana da casa brasileira, alguns\ndeles trazidos de distantes paragens, elaborados por importantes prateiros\nportugueses e europeus, que ilustram, portanto, um momento crucial da História:\na conexão de culturas díspares e longínquas, por meio do comércio marítimo. São\nmarcas do inicio da circulação das influências artísticas e da integração econômica\nem escala global: castiçais, incensadores e navetas do período D. João V; gomil\ne lavanda em <i>vermeil </i>com contrastes do\nRio de Janeiro em estilo D. José I; cuité́ baiano, farinheiras, paliteiros,\nsalvas e bandejas no padrão D. Maria I e Império Brasileiro; joias de herança\nafricana, filigranas, comendas, botões, castanhas, relicários, camafeus, cruz\nprocessional e lampadários, destacando um modelo proveniente de Sabará (MG); e\num par de tocheiros com punções do prateiro lisboeta Torcato José Clavina\nBernardes. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Rafael Schunk "}}],"version":"2.18.0"}
Rafael Schunk