Arte Sacra
{"time":1760010725470,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"O núcleo de arte sacra da Fundação Maria Luisa e Oscar\nAmericano é variado, abrangendo fragmentos retabulares, alfaias de culto\noficial, tocheiros de igrejas, oratório-ermida, balaustradas e santos\ndomésticos. Seu ápice são as obras de imaginária coletiva, surgidas da\ncriatividade de grandes artífices vernaculares, das oficinas conventuais aos\nateliês laicos. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Embora a arte sacra luso-brasileira tenha se vinculado às\ntendências e estilos praticados na Itália, França, Alemanha e Espanha em tempos\nde expansão marítima, revoluções tecnológicas e trocas culturais, certas\ncaracterísticas estéticas e fisionômicas permaneceram apegadas a gostos\nmedievais atávicos. O chamado ranço gótico e orientalismos influenciaram as\nimagens da Península Ibérica no Renascimento, desdobrando-se posteriormente nas\ntemáticas devocionais brasileiras dos períodos Maneirista, Barroco e Rococó́. A\nprincípio, temos corpos atarracados e olhares achinesados. O uso da pedra de Ançã,\nde calcária, alabastro, faiança esmaltada, terracota e lenhos estucados,\npolicromados e dourados formaram um repertório de modelos adaptados aos\nsuportes plásticos coloniais americanos: o barro para santos de conventos, ossos\nsubstituindo marfins, talcita nas lapinhas, ouro, prata e gemas locais nos\nobjetos sagrados de rito, pedra-sabão nas fachadas e madeira estofada para os\nvultos eruditos. A associação de marfins a madeiras regionais seguia a fruição\ndo Caminho das Índias, que aportava esporadicamente no nordeste do Brasil:\ncrucifixos indo-portugueses eram remontados em cruzes de jacarandá́ da Bahia e\nornamentados com crisólitas, pedrarias e metais preciosos, participando da fé\ncotidiana nos solares urbanos e fazendas. A chamada arquitetura chã, com\nfrontais despojados e interiores rebuscados, tornou-se recorrente nas igrejas\nde Portugal e no litoral do Brasil, somando-se à utilização massiva da\ncantaria e de revestimentos de azulejos, heranças comerciais de mouros e judeus\nna ocupação peninsular."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A escola portuguesa de Alcobaça, famosa pelo uso extensivo\nde pedra e terracota nas faturas monásticas e nos bustos relicários, foi\ntransplantada ao Brasil no começo do século 17 pelas mãos do mestre Frei\nAgostinho da Piedade (1580-1661). Barrista beneditino que atuava em Salvador,\nFrei Agostinho transmitiu seus conhecimentos a seu discípulo, o monge carioca\nFrei Agostinho de Jesus (c. 1600-1661). Este, por sua vez, foi autor das\nprimeiras imagens com características brasileiras, atuando em Pernambuco, na\nBahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"No sertão paulista, distante das influências europeias,\nAgostinho de Jesus traduziu nas suas imagens os traços da sociedade mameluca\nlocal, composta por indígenas, europeus e mestiços, marcada pelo gosto da moda\nluso-asiática. O barro cinzento do planalto de São Paulo, pesado e com pouca\ncoesão, foi adaptado às imagens de culto coletivo. Atendendo a uma necessidade\ntécnica e plástica, o mestre produziu obras em bases muito largas, a fim de sustentar\no peso dos cânones ornamentados com numerosas cabeças angelicais e volutas em\ncaracol, cobertas por mantos generosos e rostos ingênuos, de capilaridades\nsinuosas, aproximando as feições humanas do sagrado. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Os santos do litoral brasileiro, a destacar as obras\npaulistas nos tempos das entradas e bandeiras, receberam grande influência da\narte de Goa, antiga capital dos territórios portugueses na Ásia e palco do\ncomércio de luxo das presas de marfim e lacas, desejadas por europeus e\namericanos. A rigidez do marfim, característica das curvas dos cabelos das\nVirgens, foi replicada no barro cozido policromado, nas pregas das vestes e nas\nimagens populares ou eruditas em madeiras duras, cítricas, extraídas da Mata\nAtlântica. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Assim, começamos a cronologia sacra na Fundação Maria Luisa\ne Oscar Americano apresentando uma escultura de <i>Nossa\nSenhora da Sapiência </i>ou <i>Maestà </i>–\na Virgem em Majestade –, modelada pelo mestre Frei Agostinho de Jesus em meados\ndo século 17. Sua fatura provém do Litoral Norte do estado de São Paulo, onde,\nno antigo Convento do Amparo, na cidade de São Sebastião, é venerada\npopularmente como <i>Nossa Senhora dos Desamparados </i>ou\n<i>Montesserrate</i>. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A <i>Maestà </i>evoca as\nlitanias de Maria, como a <i>Sede Sapientiae </i>–\n“Sede de Sabedoria” –, iconografia originada nas catacumbas romanas e\nrelacionada à amamentação de Cristo ou a <i>Salus\nPopuli Romani</i>, “Protetora do Povo Romano”, suposto ícone do início\nda era cristã. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A <i>Virgem em Majestade </i>da\nColeção Americano é um dos pontos altos da estatuária da Fundação. A peça, de\nterracota policromada, é modelada em forma cônica, repousando sobre generosa\npeanha em formato lunar, com suave panejamento ondulado e traços refinados, no\nespírito Maneirista-Barroco do século 17. Pelo emprego de expressões expansivas\nem lugar de linhas contidas, o Menino Jesus é apresentado solenemente altivo,\nimponente, em atitude de graça e consagração. O trono incrementa os adjetivos\nde realeza valorizados pelos filetes dourados do manto da Santa, em complemento\nàs cores oficiais estabelecidas pela Igreja para a representação de Nossa\nSenhora: o azul Royal e o vermelho Grená́, simbolizando, respectivamente, o céu\ne a terra – em alusão às divindades sagradas envoltas em condições humanas. Os\nolhos orientalizados e os cabelos sinuosos completam o caráter mestiço da obra,\nque contém referências a várias etnias. Essa imagem em terracota seiscentista,\ncom seu pedestal de madeira e fragmento ornado com cinco cabeças de querubins,\nfoi destaque em uma exposição realizada de 10 de maio a 31 de julho de 2007 no\nPalácio dos Bandeirantes, sede do Governo do Estado de São Paulo, por ocasião\nda visita do papa Bento XVI. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Do período do Barroco joanino (1706-1750), encontram- se,\nnesse acervo, exemplares com abundante ornamentação fitomórfica, entalhes de\nfolhas de acanto e conchas esgarçadas, peanha com dossel, base com cabeças de\nanjos e fragmentos retabulares. Há, ainda, imagens profusamente decoradas em\nesgrafitos: flores e ramagens carregadas pela complexidade do espírito\ncatequético dos tempos da Contrarreforma – fervor e linguagem manifestos nos\ngestos, em um cenário de cariz pedagógico, em articulação com as narrativas do\nEvangelho e do hagiológico cristão. Inserem-se nesse contexto a imagem de <i>Nossa Senhora do Carmo</i>, procedente da Fazenda do\nCarmo, em Itaquera (SP), e uma escultura mineira de <i>São\nMiguel Arcanjo </i>do século 18, com sua balança sinalizando o peso das\nboas e más ações ao longo da vida, no julgamento das almas do purgatório. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Nos anjos tocheiros portugueses, com suas alusivas\ncornucópias, vislumbra-se a mobília religiosa presente nas iluminações das\nnaves de igrejas, composta por bobeches, suportes de velas e lumes,\ndistribuídas originalmente em pares sobre o chão no interior do templo,\nladeando o altar-mor, a banqueta ou o trono. São mensageiros habitualmente\ndescritos como guardiões do presbitério, em atitude de adoração, figurando um\nconvite às celebrações da Liturgia. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Do Rococó́ da segunda metade do século 18, há a elegante\nrocalha brasileira, sinuosa e coroada com capitéis compósitos, monumentais\nquartelões de altar que se destacam no salão nobre, emoldurando uma tapeçaria\nde manufatura europeia da série <i>Nouvelles Indes. </i>Esse\npar de fragmentos em sequências de volutas, folhagens e flor de lis é\noriginário da Igreja de São Pedro dos Clérigos, templo de arquitetura elíptica\nedificado na cidade do Rio de Janeiro pelo mestre Valentim da Fonseca e Silva\n(1745-1813), um dos principais escultores da arte colonial brasileira,\nimpiedosamente demolida em 1944 para a abertura da Avenida Presidente Vargas. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Repousando em uma cômoda, o excepcional oratório-ermida em\njacarandá́ é um dos principais exemplares de mobílias religiosas eruditas em\nmuseus paulistanos. Seu frontão monocromático de madeira nobre encerada, com\nespaldar vazado em guirlandas e volutas, representa a transição estilística de\nD. José I para os florais do reinado de D. Maria I, em fins do Setecentos. Na\nparte interna, policromada e dourada, buquês sequenciados à maneira dos estênceis\nrelembram os tecidos bordados e adamascados das casulas eclesiásticas,\nornamentos distribuídos na pintura da cenografia. O conjunto é ampliado pelas\ninusitadas portas decoradas que se abrem com seis cenas da Paixão de Cristo, em\nalto relevo, emoldurado com vidros, à maneira dos relicários. Nas peanhas\ninternas, as imagens de Nossa Senhora das Dores e de São João Evangelista\nacentuam a dramaticidade do Crucificado em agonia. O ornato de acessórios em\nprata, cabochão guarnecendo uma pedra preciosa e base decorada em <i>Arma Christi </i>– as Armas de Cristo –, representa os\ninstrumentos do martírio de Jesus. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Os retábulos e oratórios compõem as mobílias das igrejas, em\nsacristias, capelas ou residências, rememorando o passado clássico. Adaptados a\npartir dos arcos de triunfo romanos e sacralizados no culto cristão,\nrepresentam a vitória da Ressurreição sobre a morte: paz, glória, alegria e\nvida eterna. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"No período colonial, os altares Barrocos atingem o ápice da ornamentação,\nem consonância com os sacramentos implantados pela Igreja e pelo Estado. No\nregime do Padroado Português, a Santa Sé delegava aos monarcas, por meio de\nbulas papais, a administração e a organização da religião Católica nos domínios\nde além-mar. Para isso, os administradores e clérigos recorriam a rituais\natrativos e impactantes, performados em espírito teatral, alegórico e\npersuasivo: talhas profusamente douradas, banquetas com alfaias reluzentes e\nimagens ricamente estofadas eram destinadas à conversão, ao batismo de catecúmenos,\nà comunhão, aos mistérios e às exéquias. "}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Rafael Schunk "}}],"version":"2.18.0"}
Rafael Schunk